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ADOLESCÊNCIA E O MAL ESTAR CONTEMPORÂNEO: UMA LEITURA PSICANALÍTICA DA SÉRIE DA NETFLIX

  • Foto do escritor: Ligia Estanqueiros
    Ligia Estanqueiros
  • 31 de mar.
  • 6 min de leitura

A minissérie Adolescência, disponível na Netflix, tem sido amplamente discutida por sua abordagem intensa e realista dos desafios enfrentados pelos jovens na sociedade contemporânea. A trama acompanha Jamie, um garoto de 13 anos que se vê no centro de uma investigação policial após ser acusado de um crime grave. A narrativa se desenrola a partir desse evento, explorando não apenas as circunstâncias que levaram Jamie a essa situação, mas também os conflitos internos e externos que marcam sua jornada.




Ao longo dos episódios, somos apresentados ao ambiente familiar e escolar do protagonista, percebendo como suas relações são permeadas por uma ausência de escuta, repressão emocional e uma dificuldade generalizada de comunicação. Seu pai, um homem rígido e distante, tem dificuldade em estabelecer um vínculo afetivo com o filho, enquanto sua mãe, embora presente, parece incapaz de oferecer um suporte emocional genuíno. Na escola, Jamie enfrenta um ambiente hostil, onde as dinâmicas de poder entre os colegas revelam a brutalidade que pode emergir na adolescência, muitas vezes impulsionada pela necessidade de pertencimento e pelo medo da exclusão.

A série também mergulha na influência das redes sociais na vida dos adolescentes. Jamie, como muitos jovens da sua idade, busca respostas e validação no mundo virtual, onde encontra comunidades que reforçam uma visão distorcida da realidade e alimentam sua frustração. O impacto dessas interações é determinante para o desenrolar da trama, mostrando como discursos de ódio e ideologias extremas podem oferecer um falso senso de identidade e controle para jovens que se sentem perdidos.

Outro elemento central na narrativa é a relação de Jamie com a Dra. Briony Ariston, a psicóloga que o atende durante a investigação. Diferente dos outros adultos que o cercam, Briony não tenta impor respostas prontas ou condená-lo imediatamente. Em uma das cenas mais marcantes da série, ela lhe oferece um sanduíche durante uma sessão, observando sua reação. Esse gesto aparentemente banal carrega um simbolismo profundo: ao invés de confrontá-lo diretamente, ela cria um espaço onde Jamie pode expressar sua subjetividade de maneira sutil, sem a pressão de responder corretamente ou atender a expectativas externas.

Ao longo dos episódios, a série constrói um retrato poderoso da adolescência como um período de intensos conflitos emocionais, marcados pela necessidade de afirmação, pelo desejo de reconhecimento e pela dificuldade de lidar com a frustração. O desfecho, longe de oferecer uma solução definitiva ou uma moral simplista, deixa o espectador refletindo sobre os desafios de compreender os jovens em sua complexidade, sem reduzi-los a rótulos fixos de vítima ou agressor.

A série Adolescência oferece uma oportunidade valiosa para pensarmos a juventude sob a ótica da psicanálise, especialmente no que diz respeito ao desejo, à construção da identidade e à repetição do trauma. A trajetória de Jamie pode ser compreendida a partir de conceitos fundamentais da teoria psicanalítica, que nos ajudam a entender não apenas suas ações, mas também os desafios estruturais da adolescência como um momento de reorganização psíquica.


A Adolescência como um Momento de Reestruturação Psíquica

Sigmund Freud, em Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905), descreve a puberdade como um período em que as pulsões infantis são reativadas e reconfiguradas. Se na infância o desejo estava mais atrelado ao vínculo com as figuras parentais, na adolescência ele passa a buscar novas formas de expressão. Esse movimento gera angústia, pois implica uma ruptura com as identificações infantis e a necessidade de encontrar novos lugares no desejo do Outro.

Jamie, ao longo da série, vive essa transição de maneira abrupta e dolorosa. Ele não encontra um espaço seguro para elaborar suas mudanças internas e, por isso, recorre a formas mais extremas de lidar com seu mal-estar. O adolescente precisa se separar da infância, mas essa separação só pode ocorrer de maneira saudável se houver a presença de um Outro que o sustente nesse processo – algo que Jamie não encontra em sua família nem na escola.


A Repetição do Trauma e o Desamparo

Freud, em Além do Princípio do Prazer (1920), propõe que o sujeito tende a repetir experiências traumáticas na tentativa inconsciente de elaborá-las. A angústia que não pode ser simbolizada retorna na forma de ações repetitivas, muitas vezes autodestrutivas.

Jamie carrega um profundo sentimento de desamparo, que se manifesta na sua dificuldade de criar laços afetivos e na sua aproximação de discursos radicais. Ele busca pertencimento em grupos que reforçam seu sofrimento, pois é justamente nessa lógica da dor e da exclusão que ele se reconhece. A repetição do trauma na adolescência pode se manifestar de diversas formas: pela violência, pelo isolamento ou pela submissão a ideologias que oferecem respostas simplistas para um mal-estar psíquico complexo.


A Relação com o Supereu e a Violência

Outro elemento central na trajetória de Jamie é a presença de um supereu cruel e exigente. Freud, em O Mal-Estar na Cultura (1930), descreve o supereu como uma instância psíquica que impõe normas e restrições, muitas vezes de maneira punitiva. No caso de Jamie, esse supereu se manifesta na forma de um ideal de masculinidade rígido e opressor, que o obriga a reprimir suas fragilidades e a provar constantemente sua força.

A violência que ele pratica não é apenas uma agressão contra o outro, mas também um ataque contra si mesmo – uma tentativa inconsciente de punir-se por não corresponder a um ideal inalcançável. O ambiente familiar contribui para essa dinâmica: seu pai representa uma figura castradora e pouco acessível, enquanto sua mãe, apesar de mais presente, não consegue estabelecer um vínculo suficientemente acolhedor. Sem um espaço para questionar seu próprio desejo, Jamie se entrega a uma lógica de destruição que só reforça seu sofrimento.


O Imaginário das Redes Sociais e a Formação da Identidade

Lacan nos ensina que a identidade não é algo fixo, mas sim um jogo de espelhos entre o sujeito e o Outro. Na adolescência, esse jogo se intensifica, pois o jovem busca modelos que o ajudem a se definir. No passado, esses modelos eram encontrados na família ou na escola; hoje, eles estão cada vez mais presentes nas redes sociais.

Jamie encontra na internet um universo de identificações que reforçam seu mal-estar. Ele é atraído por discursos que oferecem explicações fáceis para seu sofrimento e, ao mesmo tempo, validam sua raiva. Essa dinâmica reflete o que Lacan chama de "captura pelo imaginário": o adolescente se fixa em uma imagem que parece lhe oferecer uma identidade estável, mas que, na verdade, apenas aprisiona seu desejo em uma repetição estéril.

A série mostra como essa identificação imaginária pode ser perigosa quando não há um suporte simbólico que permita ao jovem elaborar suas angústias. O problema não está apenas no conteúdo dessas comunidades online, mas no fato de que elas preenchem um vazio deixado por uma sociedade que não sabe como lidar com a dor da adolescência.


A Importância do Outro e a Saída Possível

Se a adolescência é um período de angústia e reestruturação, o que pode permitir que esse processo ocorra de maneira menos traumática? A série sugere que a resposta está na possibilidade de um Outro que acolha o sofrimento do adolescente sem reduzi-lo a um rótulo fixo.

A Dra. Briony Ariston representa essa possibilidade. Diferente dos pais e professores de Jamie, ela não tenta domesticá-lo ou puni-lo de imediato. Seu gesto de oferecer um sanduíche é, na verdade, uma intervenção simbólica: ao invés de confrontá-lo diretamente, ela cria um espaço onde ele pode começar a simbolizar sua experiência. Esse pequeno ato ilustra a importância da transferência no processo analítico – a possibilidade de um vínculo onde o sujeito possa se reinventar a partir da palavra.

O desfecho da série não oferece respostas definitivas, e isso é fundamental. Em psicanálise, não há soluções prontas ou curas rápidas; há processos de elaboração que dependem da escuta, do tempo e do desejo do sujeito. Jamie pode encontrar uma saída para seu sofrimento, mas essa saída não virá de uma imposição externa – ela precisará ser construída a partir do encontro com um Outro que não o reduza ao seu sintoma.


Conclusão

A série Adolescência nos convida a pensar sobre os desafios da juventude contemporânea sob uma perspectiva psicanalítica. Jamie não é apenas um jovem problemático ou um delinquente em potencial; ele é um sujeito em busca de um lugar no mundo, tentando lidar com sua dor da única maneira que conhece.

A psicanálise nos ensina que, por trás dos atos de violência, da raiva e do isolamento, há sempre um pedido endereçado ao Outro. Cabe a nós decidir se vamos responder com mais exclusão e repressão ou se seremos capazes de oferecer um espaço de escuta e elaboração. Afinal, a adolescência não é apenas um período de risco, é também um momento de transformação, onde novas possibilidades de subjetivação podem emergir, desde que haja um Outro disposto a sustentar esse processo.

   

Referências Bibliográficas:

Freud, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago.

Freud, S. (1920). Além do princípio do prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago.

Freud, S. (1930). O mal-estar na cultura. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago.

 Lacan, J. (1949). O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

Lacan, J. (1966). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

Lacan, J. (1973). O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.

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